Alfred Tomatis nasceu na França no fim de
dezembro de 1919, prematuro de dois meses e meio, pesando pouco menos de 1,3
quilo. Hoje em dia, os médicos se orgulham da capacidade de manter vivos os
bebês prematuros.
Mas o prematuro tem a tarefa árdua de sobreviver, projetando-se do protegido paraíso natural do útero quente e aquoso para um mundo exterior de
estrondosa confusão — de incubadoras artificiais, ruídos de máquinas e luzes
hospitalares, com reluzentes tubos de metais sendo introduzidos e retirados do
seu frágil corpinho. No caso de Tomatis, tudo aconteceu dois meses e meio antes
que o seu cérebro estivesse suficientemente desenvolvido para processar,
filtrar e abrandar todas essas sensações invasivas.
O
relógio de desenvolvimento da natureza é preciso, e muitas funções sensoriais
atingem o estado de prontidão para a realidade externa duas semanas antes da
data em média esperada para o parto. Mas o ouvido é uma exceção: suas partes alcançam
o pleno tamanho e se tornam operacionais no meio da gravidez.
“Tenho uma intuição inabalável”,
escreveu Tomatis, “de que meu trabalho e minhas especulações estão
profundamente ligados às condições e acontecimentos, sentimentos e sensações,
pensamentos conscientes e subconsciente, necessidades básicas e desejos
secretos que cercaram minha chegada ao mundo e deixaram uma marca indelével na
minha primeira infância.” As circunstâncias do nascimento prematuro de
Tomatis haveriam de persegui-lo a vida inteira.
Seu pai, Umberto Dante, de
Piemonte, na Itália, com 20 anos à época do nascimento de Alfred, era um carismático cantor de ópera
e viria a se tornar uma das melhores vozes da Europa; sua mãe era uma adolescente.
Tomatis escreveu:
Minha chegada ao mundo aparentemente não
era esperada, muito menos desejada, por minha mãe, então com 16 anos. [...] O
nascimento criava problemas para todos da família, ao que parece, e eles
certamente estavam ansiosos por se livrar daquele bebê inesperado o mais rapidamente
possível, sem muito barulho. Notáveis esforços de compressão foram usados para impedir
que a gravidez fosse notada; os espartilhos daquela época, tão fortemente
amarrados com barbatanas inflexíveis, ajudaram muito.
Tomatis passou a acreditar que essas tentativas de ocultar a gravidez provocaram o parto prematuro, deixando-o com uma estranhíssima tendência pós-traumática.
Aparentemente, a compressão também influenciou minha necessidade, nos primeiros
quarenta anos de vida, de usar sempre roupas apertadas, com um cinto que me
cortava ao meio, e apertado igualmente em sapatos acanhados. À noite, eu só
conseguia dormir debaixo de oito cobertores. Embora não sentisse frio,
precisava dessa pressão do mundo ao meu redor para reproduzir as condições vitais
que experimentara no útero da minha mãe.
Pode parecer um sintoma
idiossincraticamente neurótico, mas não é totalmente desconhecido em pessoas que nasceram de forma prematura ou com espectro autista. A escritora Temple Grandin, ela
própria autista, constatou que se acalmava com pressão profunda em seu corpo, e
inventou uma “máquina de apertar” para se tranquilizar. Embora Tomatis não
fosse autista, compreendia certas ânsias mais atípicas que as pessoas autistas
e prematuras costumam vivenciar. Mas depois que entendeu finalmente a origem de
sua ânsia por pressão, perdeu a necessidade.
Tomatis achava que sua comunicação com a mãe “nunca foi fácil. Todas as minhas tentativas de intimidade eram rechaçadas”. A família vivia em Nice, embora o pai de Tomatis, como cantor, costumasse viajar durante seis meses por ano. Desde que nasceu, o pequeno Alfred vivia sempre doente, com problemas digestivos. O médico que foi vê-lo não entendia os sintomas, mas disse: “Preciso encontrar a resposta.” Alfred ficou tão tocado com isto que resolveu tornar-se médico.
O jovem Alfred idealizava o pai, Umberto, mas à distância, pois estava ausente
com frequência. Certo dia, Umberto disse ao filho: “Pensei muito no assunto,
meu menino. Se realmente quiser tornar-se médico — e um bom médico —, precisa
ir para Paris. Não conhecemos ninguém lá, de modo que você terá de se virar
sozinho, mas vai aprender o que é a vida, e isto certamente será útil para
você.”
Alfred tinha apenas 11 anos, mas, achando
que o plano agradaria ao pai, foi. Ficou internado numa escola, vivendo anos de
grande solidão. Depois de alguns
fracassos escolares, notou que absorvia melhor as lições se as lesse em voz
alta. Estudava com afinco, deitando-se tarde e despertando às 4h da manhã,
imitando, nesse sentido, o temperamento e os hábitos de trabalho do pai.
Costumava trabalhar ouvindo Mozart.
No terceiro ano escolar, conquistou praticamente todos os prêmios acadêmicos da sua turma. No colegial, seu professor era o filósofo Jean-Paul Sartre.
Alfred concluiu então dois certificados em ciências, terminando em primeiro
lugar em ambos, um deles na Sorbonne. No momento em que entrava para a
faculdade de medicina, teve início a Segunda Guerra Mundial, e ele foi
alistado. No início da guerra, toda a sua unidade foi feita prisioneira pelos
alemães e italianos. Ele participou de uma fuga bem-sucedida e entrou para a
Resistência francesa, como mensageiro. De dia, ajudava um médico num campo de
trabalhos forçados. Depois que os Aliados desembarcaram na Normandia, ele foi
destacado para a Força Aérea Francesa e começou a estudar medicina dos ouvidos,
do nariz e da garganta (ORL, ou otorrinolaringologia), ainda sob a influência do pai, que tanto amava a música e os sons.
(...) Tomatis observou que o ouvido está intimamente ligado não só ao equilíbrio como também à postura. Existe uma evidente postura de escuta, observada com frequência quando as pessoas ouvem música clássica: na maioria delas, o ouvido direito fica um pouco projetado para a frente, assim como a cabeça.
Essa postura de escuta, ele
observou, está ligada ao tônus global do corpo: a pessoa parece ágil e alerta.
Assim como os neurônios nunca se desligam completamente, da mesma forma, numa
pessoa saudável, os músculos relaxados nunca estão totalmente frouxos. Tomatis
sustentava que o estímulo proveniente do ouvido tem um impacto na verticalidade
e no tônus de todo o corpo — e, como se sabe, certos tipos de música fazem com que
as pessoas tenham vontade de se levantar para dançar. Sua observação de que
a boa escuta é energizante parecia indicar que as frequências mais altas energizam
o cérebro, o que ele resumiu com a afirmação de que “o ouvido é uma bateria
para o cérebro”.
(...)
Muitas crianças que tiveram infecções auditivas
crônicas têm hipotonia (generalizado tônus muscular baixo) dos músculos do
ouvido. É comum em crianças com atrasos de desenvolvimento a hipotonia em
todo o corpo. Esse generalizado tônus muscular baixo também afeta os
músculos auditivos, de tal maneira que não conseguem focar frequências sonoras
específicas. Assim, ouvem apenas ruídos indiferenciados, sons abafados
ou excesso de sons ao mesmo tempo, e seus córtex auditivos nunca recebem sinais
claros e não conseguem desenvolver-se normalmente. Foi o que aconteceu com
Paul: como só ouvia sons abafados, só conseguia murmurar, e seus mapas
cerebrais auditivos eram mal diferenciados. Muitas crianças com espectro autista
também têm problemas com o zoom auditivo.
Tomatis deu-se conta de que podia usar o
Ouvido Eletrônico para
exercitar o zoom auditivo manipulando sons. Como tratava-se de pessoas com
mapas auditivos indiferenciados, ele tocava frequências sonoras que alternadamente
estimulavam e relaxavam os músculos auditivos frouxos e os circuitos cerebrais
envolvidos, para treiná-los. As pessoas que ouviam sua música modificada eram
treinadas a produzir mapas cerebrais mais diferenciados, e com eles podiam
começar a diferenciar a fala do ruído de fundo.
Trecho retirado
do livro “O cérebro que cura” Norman Doidge